

Foto: yosoynuts via Visual hunt / CC BY-ND
ORGULHO DE SER QUEM SE É
Centenas de pessoas estão reunidas em um dos poucos espaços em Nova Iorque onde encontram acolhimento e podem ser e exercer quem são. Leis criminalizam as chamadas “condutas homossexuais”. Oficiais invadem o local em mais uma batida policial nas primeiras horas da madrugada do dia 28 de junho. Dessa vez, encontram resistência. Durante seis dias em Greenwich Village, no número 53 da Rua Christopher, o bar The Stonewall Inn ferve com o calor da revolta.
1969.
1969.
A série de protestos iniciados no dia 28 ficou conhecida como a Revolta de Stonewall, o primeiro marco do movimento pela luta dos direitos LGBT+. Marchas em comemoração ao aniversário dos protestos começaram a ser organizadas no ano seguinte, em 1970, sendo as precursoras das Paradas que encontramos atualmente por todo o mundo. Hoje, 28 de Junho é celebrado como o Dia Internacional do Orgulho LGBT+. Mas orgulho do quê?
“O ‘orgulho’ é um conceito construído pelo movimento LGBT+ para se contrapor à ‘vergonha’, conceito que inferioriza e menospreza as pessoas LGBT+”, é o que afirma Jaqueline Gomes de Jesus, 39, ativista e professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). “O ‘orgulho’ propaga a ideia de que a forma de ser de cada pessoa é uma dádiva que a aproxima de comunidades com características semelhantes às suas, e deve ser afirmada como diferença que não se altera, não deveria ser reprimida nem recriminada”.
Em São Paulo, a Parada do Orgulho LGBT teve seu primeiro desfile em junho de 1997 e reuniu cerca de 2.000 pessoas, segundo a Polícia Militar. Em sua 21ª edição, o evento realizado no dia 18 de junho de 2017 reuniu mais de 3 milhões de pessoas segundo os organizadores, sendo considerada um dos maiores eventos de visibilidade LGBT+ do mundo.
Mais que uma festa que celebra a diversidade, a Parada é política em sua essência. Organizada pela Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (APOGLBT) em conjunto com outras ONGs, coletivos e militantes independentes, a última edição teve como tema a laicidade do Estado, sob o slogan “Independente de nossas crenças nenhuma religião é lei. Todas e todos por um Estado Laico”.
A justificativa oficial do tema descreve como a interferência de valores religiosos no meio político é prejudicial: “A laicidade do Estado democrático garante respeito à diversidade religiosa, humana e cultural. O Estado deve assegurar todos os direitos humanos, tais como a liberdade religiosa, o Direito de cada cidadão a exercer ou não a religiosidade que quiser, mas deve ser garantida a não discriminação. Além disso, é necessária a autonomia do Estado frente às Igrejas, garantindo sua imparcialidade (...) é uma grave ameaça à cidadania, e à democracia constitucional brasileira, o fato de integrantes dos Três Poderes, em qualquer nível, atuarem tendo como guia seus valores religiosos, sem observância à cidadania, à pluralidade e aos direitos humanos”.
A luta pela laicidade do Estado se mostra urgente quando observamos os retrocessos legais que vêm acontecendo nos últimos anos. Entre eles o arquivamento definitivo da PLC 122/06, projeto que previa a criminalização da homofobia por meio da alteração da Lei 7.716/1989, adicionando também a discriminação por gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero aos “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, com penas que iriam de um a cinco anos de reclusão. A PLC 122 foi arquivada definitivamente em 2015 após tramitar durante 8 anos no Senado, encontrando resistência especialmente das lideranças religiosas que alegaram que essa alteração na lei original seria uma violação ao direito à sua liberdade de expressão.
“Em tempos de retrocessos em direitos conquistados, a realização dessa grande manifestação política e cultural, por liberdade, direitos e resistência, é um alento e precisa ser preservada para que não seja atacada”, afirma a vereadora Sâmia Bomfim, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL-SP). A vereadora protocolou no dia 14 de junho o Projeto de Lei 399/2017, que pretende tornar a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo um Patrimônio Cultural Imaterial da cidade. Se aprovada, o evento será preservado sob o Programa Permanente de Proteção e Conservação do Patrimônio Imaterial do Município de São Paulo, com base na Lei 14.406/2007.
Contudo, a Parada do Orgulho LGBT não foi a precursora das manifestações de cunho político em defesa dos direitos dessa população no Brasil. Dezessete anos antes da primeira Parada de São Paulo, a cidade recebia um protesto pioneiro contra a repressão violenta e a discriminação cometidas pela polícia.
SÃO PAULO COMEÇA A CAMINHAR
As escadarias do Teatro Municipal de São Paulo estão apinhadas de pessoas reunidas por um objetivo comum: serem ouvidas. Militantes de 13 organizações protestam contra as operações policiais comandadas pelo delegado José Wilson Richetti, que há meses vêm prendendo arbitrariamente, espancando e até assassinando prostitutas, travestis, homossexuais, negros e desempregados no centro da cidade com o respaldo do Estado. Na noite de 13 de junho, grupos homossexuais, feministas e negros caminham juntos sob a garoa até o Largo do Arouche, lutando pelo direito de existir.
1980.
1980.
Durante o regime militar da ditadura brasileira, o movimento LGBT+, então focado principalmente na pauta homossexual, também vivia sob a censura e sofria com as perseguições. Além disso, as discussões sobre orientação sexual, identidade de gênero e racismo eram desprezadas pelos movimentos de esquerda, os quais acreditavam que esse tipo de debate não cabia dentro da luta principal contra a ditadura em si. A passeata pelo fim da violência policial e destituição do delegado Richetti teve a coragem de ser a primeira ação organizada do movimento LGBT+ no país, em um momento em que o medo era o sentimento que imperava.
Três anos depois, em 19 de agosto de 1983, outro protesto entrou para a história do movimento. Dessa vez protagonizado pelas mulheres do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), que se manifestaram contra os donos do Ferro’s Bar, local no bairro da Bela Vista, em São Paulo, frequentado em sua grande maioria por lésbicas. Os donos do bar haviam proibido a circulação do boletim Chana com Chana, publicação voltada ao público lésbico. O dia ficou registrado como o Dia Nacional do Orgulho Lésbico.
Nos anos 1990 as iniciativas se multiplicam com o surgimento de ONGs, setores em partidos políticos e em grupos religiosos, entre outros. É nessa época que surge a sigla “GLS” (gays, lésbicas e simpatizantes), usada para se referir a produtos e serviços de nicho. A presença dos representantes das outras siglas além da G no movimento fica mais forte e o governo finalmente passa a dar atenção à crise do HIV/Aids. Então vale lembrar que as pautas do movimento LGBT+ só começam a ser reconhecidas como questões de saúde pública, como o combate às DSTs e à Aids, e não pelo reconhecimento das demandas de direitos e cidadania.
A letra G, que designa os gays na sigla LGBT+, possui muito mais visibilidade por dizer respeito especificamente a homens que, mesmo sendo homossexuais, ganham maior relevância em uma sociedade patriarcal. A Parada do Orgulho LGBT+, por exemplo, ainda é conhecida por muitos como a “Parada Gay”. Por conta desse fato, desde 2003, é realizada, no dia que antecede a Parada, a Caminhada das Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo. “Este ato continua sendo realizado para representar reivindicações em favor dos direitos das lésbicas e bissexuais, direitos que são historicamente negados devido ao sexismo, lesbofobia, bifobia e misoginia, resultando em invisibilidade política e social”, aponta Sheila Costa, 43, pós-graduada em História pela Unicamp e professora da rede pública estadual.
Apesar das limitações federais, São Paulo é uma das capitais mais progressistas quanto aos direitos civis da população LGBT+, ao menos no papel. Confira algumas das principais leis:
AS “L”, OS “G”, OS “B” & AS “T”
Pela primeira vez, travestis e transgêneros ganham uma campanha contra a transfobia com o respaldo do Governo Federal. “Travesti e Respeito” é uma medida paliativa, mas é uma medida. O movimento trans está representado por 27 ativistas reunidos em Brasília para promover esse debate. O dia 29 de janeiro fica registrado na história como o Dia Nacional da Visibilidade Trans.
2004.
2004.
A questão da visibilidade é muito discutida dentro do movimento LGBT+. A sigla, ao mesmo tempo que une várias pautas em prol do avanço de direitos, também divide, e não poderia ser diferente. Cada letra representa um movimento específico, com suas próprias demandas e desafios. E além disso, a sigla LGBT+ trata de duas coisas diferentes, embora sejam muitas vezes confundidas. Enquanto para as lésbicas, gays e bissexuais a questão principal é orientação afetiva-sexual, para as travestis e pessoas trans, é uma questão de identidade de gênero.
“Os LGBTs são um grupo político por questões históricas, mas não necessariamente estão unidos nas pautas políticas”, afirma Jaqueline Gomes de Jesus, doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB). “Em geral as pautas ‘não-gays’ não são valorizadas: as pautas lésbicas, bissexuais e principalmente as pautas trans são renegadas para um segundo, terceiro, quarto plano de discussão”.
Por não se enquadrarem nos padrões de gênero, as travestis e pessoas trans são excluídas em várias instâncias: familiar, escolar, mercadológica. Nessa situação de vulnerabilidade social, acabam recorrendo à prostituição e ao tráfico como formas de sobrevivência. Falar sobre as necessidades dessa parcela da população é crucial. “O maior desafio do movimento LGBT é interno, de considerar que sua falha principal é não reconhecer e lutar pelas pautas das pessoas trans, porque há a discussão em um nível internacional de que talvez o movimento trans deva se pautar numa lógica de identidade própria e se afastar do movimento político LGBT”, completa Jaqueline.
MARCAS E MARCOS
A luta do movimento LGBT+ é histórica. Todo o progresso conquistado até aqui é resultado do esforço de milhares de pessoas que se recusaram a baixar a cabeça frente às injustiças sofridas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, pessoas trans e todas e todos aqueles divergiam do que era considerado padrão. Essas pessoas caminharam por onde não podiam e gritaram até que suas vozes fossem ouvidas e, das marcas dessa resistência, construíram os marcos hoje conhecidos.