
CCLGBT
Poucos que passam pela entrada do número 23 na Rua do Arouche, no bairro da República, centro de São Paulo, sabem que no 4º andar daquele prédio estão as instalações do Centro de Cidadania LGBT “Luiz Carlos Ruas”, conhecido como Centro de Cidadania LGBT do Arouche (CCLGBT). Vinculado à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), por meio da Coordenação de Políticas para LGBT, a instituição foi inaugurada em março de 2015, substituindo o antigo Centro de Combate à Homofobia, que funcionava em outro local desde 2007.
Enquanto o Centro de Combate à Homofobia atuava na defesa imediata às agressões sofridas pela população LGBT+, o CCLGBT trabalha sobre dois eixos: o da defesa dos direitos humanos e o da promoção dos direitos fundamentais e da cidadania da população LGBT+.
No eixo da defesa dos direitos humanos, o CCLGBT oferece atendimento socioassistencial, psicológico e jurídico para as vítimas de violência, discriminação e preconceito, ou de mal atendimento nos espaços e equipamentos públicos e privados da cidade. Além de receber denúncias presenciais, o CCLGBT também centraliza as denúncias sobre LGBTfobia feitas por meio do Disque 100, o Disque Direitos Humanos, vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos da Presidência da República.
O segundo eixo, o da promoção dos direitos fundamentais e da cidadania da população LGBT+, efetiva-se por meio de mediação de conflitos, palestras e sensibilização em locais focais, como serviços públicos, escolas e unidades de saúde. “Esses direitos são basicamente os direitos de qualquer outra pessoa, só que muitas vezes não são respeitados por discriminação em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero da pessoa”, explica Caio Reina Lotufo, 26, atual coordenador geral do Centro de Cidadania LGBT do Arouche. “A gente tem relatos de vítimas de violência em vários âmbitos, agressões físicas, psicológicas, verbais, constrangimentos que afetam essa população de uma maneira variada e acarretam em um estigma social”, revela.
Além da unidade da região central, há outros três Centros de Cidadania LGBT distribuídos pela capital paulista: em São Miguel Paulista, na zona Leste, na Parada Inglesa, na zona Norte, e em Santo Amaro, na zona Sul. Os centros são administrados por ONGs selecionadas por meio de editais e quem administra atualmente a iniciativa é a Rede Cidadã Multicultural. Todos os quatro são parte das ações do Programa de Metas da Gestão 2013/2016 da Prefeitura de São Paulo e suas ações estão embasadas na Meta 61: "desenvolver ações permanentes de combate à homofobia e respeito à diversidade sexual".
Os espaços do Arouche e de Santo Amaro contam ainda com o apoio de duas Unidades Móveis, que operam visitando locais específico e realizam ações como testagens rápidas de fluído oral para a checagem de HIV e distribuição de preservativos, além de participarem de eventos culturais. “Para evitar o estigma de ‘van do teste de Aids’, as Unidades Móveis também participam de saraus, shows e performances culturais, além de desmistificar algumas questões relacionadas aos LGBTs”, esclarece Lotufo.
Cada instalação conta com suas características próprias, mas a maioria dos atendimentos está concentrada no do Arouche, pois o centro da cidade é frequentado também por pessoas que não residem nos arredores e é uma região com grande fluxo da população LGBT+. O CCLGBT Arouche tem como principal público as mulheres trans e travestis, em especial as que se encontram em um contexto de vulnerabilidade social, como em situação de rua e nos casos de dependência química.
Nos espaços dos CCLGBT também são realizadas oficinas e cursos voltados para a questão da empregabilidade e da cultura. Entre essas atividades está o Projeto de Reinserção Social Transcidadania, destinado a discutir trajetórias e oferecer condições de recuperação de oportunidades de vida para mulheres transexuais, travestis e homens trans.
REINSERÇÃO SOCIAL DAS PESSOAS TRANS
O Transcidadania entrou em vigor em janeiro de 2015 como uma iniciativa inédita em termos de políticas públicas para pessoas trans. O programa oferta bolsas condicionadas à execução de atividades relacionadas à conclusão de escolaridade básica e tem o intuito de preparar essa população para o mercado de trabalho e a vida profissional. Para fazer parte do Transcidadania é preciso ter mais de 18 anos, estar regularmente matriculada em alguma instituição de ensino, comparecer às aulas e cumprir uma carga horária de, ao menos, 18 horas dentro dos cursos nos CCLGBT.
A princípio o Transcidadania operava como um programa dentro do Centro de Cidadania LGBT do Arouche, mas a atual gestão municipal definiu que as 175 bolsas deveriam ser distribuídas entre os quatro CCLGBT, com um foco maior na empregabilidade da população trans.
Um dos desafios do programa é articular as demandas das beneficiárias com o que os cursos oferecem. “Nós temos uma visão humana, mas existe uma burocracia acima da gente. Então tentamos ser o filtro entre as meninas, com quem a gente convive e entende as demandas específicas, e o poder público”, afirma Aristides Silva, 25, assistente técnico do CCLGBT do Arouche.
Os CCLGBT formam uma das primeiras instâncias de apoio ao segmento T na cidade de São Paulo. Entre os 17 funcionários que trabalham no centro do Arouche, três são pessoas trans. Para a funcionária Miriam Nurad, 54,o centro é um lugar de abrigo e abertura de oportunidades. “Aqui é uma acolhida, é um espaço que me acolheu de braços abertos e hoje me sinto muito gratificada porque a coordenação geral me deu a oportunidade de estar aqui elaborando o que eu sou, o que gosto de fazer”, declara.
Raira Pereira dos Santos, 26, também trabalha no CCLGBT Arouche e, para ela, "é uma honra e um prazer estar trabalhando”. "A gente sabe que o trabalho para a classe LGBT é bem deficiente, em especial para as pessoas trans, por todos os obstáculos que elas enfrentam para encontrar um emprego. A discriminação é muito grande, o preconceito é muito grande”, avalia.
NÚMEROS DA LGBTFOBIA
A discriminação e o preconceito são barreiras que as pessoas LGBT+ enfrentam diariamente. Eles estão na raiz da violência praticada em razão da LGBTfobia e que vitima milhares de pessoas todos os anos, em especial o segmento T, que se encontra na situação de maior risco. Em números absolutos, o Brasil é o país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo de acordo com dados publicados pela ONG Transgender Europe (TGEu) em novembro de 2016 - de 2008 a 2016, ao menos 868 foram assassinados aqui. Esses números também se baseiam nos dados levantados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) que, por sua vez, analisa publicações da imprensa periódica nacional.
O portal Quem a Homotransfobia matou hoje?, administrado pelo GGB, contabiliza os assassinatos documentados no país diariamente. É preciso ressaltar que os dados colhidos pelo GGB são hemerográficos, ou seja, baseiam-se em informações da imprensa, e, por isso, indica que a realidade dessas estatísticas é muito maior, já que a grande parte dos casos de violência LGBTfóbica sofrem de subnotificação, não sendo registrados pelos veículos midiáticos, nem pelas instituições de segurança pública.
Enquanto serviço, os Centros de Cidadania LGBT têm suas limitações. Uma delas é a questão do acolhimento às pessoas que não tem para onde ir. Funcionando das 9h às 19h, os CCLGBT não possuem a infraestrutura necessária para esse tipo de auxílio, que requer um trabalho de acompanhamento e suporte ainda maior. E a demanda é muito alta.
De acordo com um censo levantado pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) da Prefeitura Municipal de São Paulo em 2015, das 15.905 pessoas em situação de rua na cidade, entre 5,3% e 8,9% pertencem à comunidade LGBT+, ou seja, algo entre 842 e 1.415 pessoas. Essa pesquisa aponta que a grande maioria foi expulsa de casa, encontrando nas ruas a única forma de sobrevivência, seja por meio do tráfico de drogas ou da prostituição. Muitas dessas pessoas se recusam a ir para os centros de acolhida pois temem sofrer agressões de outros ocupantes também nesses espaços. Neste aspecto, as travestis e pessoas trans também são as mais vulneráveis. Da necessidade de um local que tratasse prioritariamente dessa parcela da população nasceu o Florescer.
FLORESCER
No número 1101 no final da Rua Prates, no Bom Retiro, foi construído o Centro de Acolhida Especial para Mulheres Transexuais e Travestis Florescer. A iniciativa é pioneira no Brasil e oferece uma infraestrutura completa: dormitórios, refeitório, área de convivência, quadra poliesportiva, biblioteca, cozinha, sala de atendimento, lavanderia e sanitários para até 30 pessoas cadastradas no projeto, 24 horas por dia.
A atuação do Florescer visa incluir socialmente essas pessoas ao facilitar o acesso aos serviços de saúde, à educação e ao mercado de trabalho, além de trabalhar com a reconstrução de laços familiares, questões muito particulares quando falamos do segmento T. “Se você coloca todos os LGBTs dentro de uma mesma caixinha com o mesmo pensamento, você acaba não enxergando questões minuciosas de cada segmento específico” afirma Alberto Silva, 43, coordenador do Florescer.
“É preciso abrir a cabeça, ver novos horizontes e ter um olhar mais humano, o que faz toda a diferença. A partir do momento que você consegue olhar o outro com carinho, com amor, com mais respeito e mais tolerância, você vai conseguir uma sociedade mais igualitária”, comenta Silva. O projeto é administrado pela ONG Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana (CROPH) em parceria com a SMADS.
Ao chegar ao Florescer, as travestis e mulheres trans passam por um processo chamado Plano Individual de Atendimento (PIA), em que há um levantamento psicossocial de cada pessoa para que se possa definir uma meta diagnóstica. A partir desta meta é realizado um trabalho de desenvolvimento das suas potencialidades individuais e como grupo.
Thiago Sales, 27, atua como psicólogo no Florescer há 3 meses. “Eu acho que dentro da assistência social pública, que tem o seu início com a Constituição de 1988 e a ideia dos direitos cidadãos, conseguir somente em 2016 fundar uma casa para a população trans diz muito sobre a negligência e o abandono do Estado. Quase 30 anos para ter uma casa para essa população é muito simbólico” aponta.
Para ele a iniciativa é importante em vários aspectos: “Não só para a população trans que fica na casa, que consegue ser acolhida e ter um atendimento especial, mas também para a população que ainda não foi abrigada, por ser um projeto piloto que pode abrir portas para outros centros de acolhida em todo o Brasil”.
JARDIM DE VIVÊNCIAS
Cinquenta travestis e mulheres trans já passaram pela casa desde a sua inauguração em abril de 2016. Edilene Ferreira, 40, é assistente social no Centro de Acolhida Especial desde o começo. “Trabalhar aqui é descobrir a cada dia um novo potencial do ser humano. Cada menina que a gente recebe aqui traz uma demanda, coisas que você nem imagina, mas que nos faz aprender com elas. É um trabalho de aprendizado. Tanto ensinando, quanto aprendendo”.
Com bagagens tão diferentes, o diálogo é um desafio a ser trabalhado. “Um dos maiores problemas é o convívio entre elas e a quebra de vínculos. Como reestruturar um vínculo familiar e o respeito entre elas mesmas. Mas esse não é um problema só do Florescer, é um problema nos maiores centros de acolhida de São Paulo”, aponta a assistente social.
São diversas vivências reunidas em um mesmo espaço. Existem tantas histórias quanto vozes para contá-las. Monique Alvarenga, 34, veio de Santa Catarina ainda criança. Para ela, o Florescer é a sua nova casa. “É um espaço onde a gente vive, convive, trabalha. Onde nós temos um novo ângulo de visão sobre a vida. Aqui é uma casa ‘T’ que nos oferece tudo aquilo que o mundo nos tira”. Depois de se apresentar nos saraus que a casa organiza, Monique quer seguir a carreira de cantora. “Eu quero cantar, quero gravar meu DVD. Sou apaixonada pela música e tenho um talento imenso”, afirma.
Grogui, 29, é do Rio de Janeiro e há um mês mora no Centro de Acolhida Especial. “Esse lugar tem sido um espaço de aconchego onde posso me fortificar”. Ela quer estar no mercado de trabalho, mas sabe que o caminho não é fácil: “Eu espero que a sociedade hoje saiba respeitar a gente e que eu consiga alcançar meus objetivos: ser feliz e conquistar o meu espaço profissional, minha casa e meus bens”.
Estudando para o vestibular, Beatriz Laehy, 21, se sente mais à vontade no Florescer. “Aqui eu tenho tempo para estudar, para ler. Em outros albergues eu não tinha tudo isso”. Ela quer cursar uma faculdade de jornalismo. “Quero me tornar uma jornalista para falar sobre moda, uma coisa que eu amo”.
Já para Andy Buchardy, 21, o espaço representa oportunidades. Natural de Pernambuco, ela tem um objetivo. “Eu quero virar mulher. Tem muita coisa que eu quero fazer. Eu ainda estou na metade do caminho, ainda não concluí tudo o que eu quis”.
PROCESSO TRANSEXUALIZADOR
O Processo Transexualizador é uma questão essencial para muitas pessoas trans. Trata-se do processo pelo qual a pessoa transgênero passa, de forma geral, para que seu corpo adquira características físicas do gênero com o qual se identifica. Isso pode incluir procedimentos como o tratamento hormonal e a cirurgia de redesignação genital, entre outras cirurgias.
Em agosto de 2008, o Processo Transexualizador foi instituído no Sistema Único de Saúde (SUS) por meio das Portarias nº 1.707 e nº 457 do Ministério da Saúde, posteriormente ampliadas pela Portaria nº 2.803 em novembro de 2013. Existem nove serviços habilitados pelo Ministério da Saúde onde as pessoas trans encontram atendimento ambulatorial, mas apenas cinco realizam a cirurgia de redesignação genital, entre eles o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). De 2008 a 2016, ao todo, foram feitos 349 procedimentos hospitalares e 13.863 procedimentos ambulatoriais relacionados ao Processo Transexualizador.
O Centro de Acolhida Especial Florescer também atua no encaminhamento das moradoras para os atendimentos públicos de saúde especializados. Há uma demanda muito grande por esses serviços entre as travestis e mulheres trans. Na busca do alinhamento da forma exterior com o sentimento interior, muitas delas recorrem a processos de alto risco, como a aplicação clandestina de silicone industrial que, entre outras complicações de saúde, pode levar à morte.
Analisando o perfil socioeconômico do censo da SMADS sobre a população em situação de rua em São Paulo, é possível identificar que a parcela de pessoas LGBT+ é mais jovem que a heterossexual. Pessoas mais jovens também têm suas demandas próprias, já que muitas vezes acabaram de ser expulsas de casa e, sem o suporte familiar, ficam completamente perdidas. Uma enquete aplicada on-line com 250 internautas, a maioria entre 19 e 30 anos de idade, apontou que no caso de um possível desalojamento de suas casas por conta de LGBTfobia, quase 60% ficariam na casa de amigos, 17% procurariam acolhimento com outros familiares e cerca de 15% não saberiam para onde ir.
CASA 1
Iran Giusti, 28, jornalista e militante LGBT+, tomou uma decisão que tem mudado a vida de muita gente. Em 2015, depois de receber no sofá do próprio apartamento pessoas que haviam sido expulsas de casa em razão da orientação sexual e perceber que essa é uma demanda urgente entre os LGBT+, Iran fundou a Casa 1.
A iniciativa tomou forma com um financiamento coletivo inicial na plataforma Benfeitoria, organizado pelo jornalista em parceria com o estudante de relações públicas Otávio Salles e a agência de comunicação Quatro e Um. Com o valor arrecadado de 112 mil reais pagando o aluguel por um ano, no número 277 da Rua Condessa de São Joaquim, na Bela Vista, foi aberta a República de Acolhimento e Centro Cultural Casa 1 no dia 25 de janeiro de 2017.
Como forma de divulgar o projeto, a equipe por trás da iniciativa produziu um vídeo com dados que mostram a necessidade de lugares como a Casa 1.
Enquanto república de acolhimento, a Casa 1 abriga por até 3 meses LGBTs entre os 18 e 25 anos que acabaram de ser expulsos de suas casas e não tem noção do que fazer. O sobrado tem a capacidade para 20 ocupantes e, desde a inauguração, 34 pessoas já passaram por lá. Hoje, 14 pessoas moram na casa e a lista de espera é bem grande.
“Muito do nosso trabalho é redução de risco. São pessoas muito jovens e toda semana tem uma demanda nova”, comenta Iran, que coordena a república. A saúde mental dos moradores é uma prioridade e boa parte do serviço que a casa presta está baseada no atendimento psicossocial prestado por voluntários. A equipe da Casa 1 é composta por grupos de trabalho formados por esses voluntários, divididos entre comunicação, saúde clínica, saúde mental, jurídico e social, que acompanham os moradores durante o período de estadia.
As despesas mensais do lugar giram em torno de 14 mil reais. Além do financiamento coletivo recorrente, a Casa 1 conseguiu o apoio de grandes marcas em campanhas durante o mês de junho, o mês da diversidade, como a PepsiCo e a Ambev. Essas parcerias vão manter a casa funcionando por mais um ano, além de contribuir muito para a visibilidade do projeto.
Segundo Iran, uma média de 8 pessoas por semana procuram a Casa 1, sem contar os inúmeros pedidos de acolhida recebidos pelas redes sociais. Por isso um dos planos futuros é transferir a república para um outro local, deixando o endereço atual só para o centro cultural, que hoje funciona apenas no térreo. E o centro cultural é parte fundamental de toda a iniciativa.
O Centro Cultural Casa 1 se divide em três espaços: na sala Claudia Wonder é feito um atendimento paliativo por meio da doação de roupas e material de higiene básica para a população em situação de rua; a Sala Vitor Angelo é multiuso, recebendo exposições e eventos em geral; e na biblioteca Caio F. Abreu são ministrados cursos e é onde funciona um sistema de empréstimo de livros e filmes.
Bruno Oliveira, 30, é o coordenador do centro cultural. “O centro cultural é da diversidade, de todas as diversidades possíveis, então a gente trabalha sempre com a perspectiva interseccional: a gente não fala só sobre questões de gênero e orientação, também discutimos questões de classe, de faixa etária, de raça, de origem”. O centro tem dois focos específicos: criar um espaço seguro no entorno da Casa 1 para os moradores, garantindo um bom relacionamento com toda a vizinhança, e fazer um trabalho de base. “A gente acredita que esse trabalho de diálogo com as pessoas do entorno é muito importante para promover essa noção de diversidade”, afirma.
Todo domingo às 10h a Casa 1 promove uma formação de voluntários, onde é explicada toda a infraestrutura do lugar e como funciona o trabalho da iniciativa, além de uma contextualização sobre gênero e sexualidade, um panorama do movimento LGBT+ e das políticas públicas para essa população. Outro projeto que opera uma mudança profunda é o Casa Aberta para Crianças, que recebe crianças do bairro para oficinas culturais toda quarta-feira às 10h. Mesmo não tratando diretamente de temas relacionados aos LGBT+, esse tipo de trabalho é essencial para expandir os conceitos de respeito à diversidade às gerações mais novas.
A iniciativa da Casa 1 tem ganhado muita repercussão. As campanhas da Skol e da Doritos para arrecadar fundos para a casa durante a 21ª Parada do Orgulho LGBT foram um marco, mas a divulgação por meio das redes sociais é a força motora do projeto desde o princípio. Na pesquisa realizada on-line com os 250 internautas, a grande maioria apontou a Casa 1 como referência entre as iniciativas de apoio e acolhimento LGBT+.
REFLEXO DA VISIBILIDADE
Foi essa visibilidade que levou Natália Pasetti, 26, do Rio de Janeiro, a visitar e conhecer o projeto. A estudante de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) faz parte de uma equipe que pretende fundar a própria casa de acolhida na capital fluminense, a Casinha.
Natália decidiu iniciar esse projeto depois de pesquisar sobre a situação dos LGBTs na Rússia. “Encontrei matérias sobre o campo de concentração onde essas pessoas estão sendo presas e torturadas na Chechênia. Isso mexeu demais comigo e eu coloquei na cabeça que tinha que fazer alguma coisa. Na mesma semana tinha visto dois posts no Facebook, de meninas de um grupo lésbico do qual faço parte, pedindo ajuda pois tinham sido expulsas de casa. Liguei para a minha melhor amiga, Lorena, e propus criarmos um espaço para ajudar essa parte da população LGBT que não é aceita pela família”.
“Comecei a procurar sobre e encontrei a Casa 1. Fui lá visitar e vi que era possível a construção de um local de acolhimento. Fomos contando para os amigos, chamando gente e agora o projeto já está bem mais estruturado”, conta a estudante. Entre esses amigos está o consultor financeiro Lucas Melo, 26, que acompanhou Natália na segunda visita. “A visita à Casa 1 foi particularmente incrível porque pudemos ver como o projeto que estamos idealizando funciona na prática. Conhecer um pouco pessoas como as que queremos acolher, suas histórias, a importância de associar essa iniciativa à cultura e à educação como uma forma de transformar a consciência coletiva do entorno e ajudar a quebrar preconceitos. Esse é o nosso propósito” declara Melo.
O projeto Casinha está saindo do papel. Grupos de trabalho já estão formados em áreas como jurídico e comunicação. “Temos diversos voluntários, mais ou menos uns 60. Agora estamos na fase de mobilização dessas pessoas”, comenta Pasetti.
OUTRAS INICIATIVAS
Mesmo sem poder abrigar, outras iniciativas dão apoio e servem de acolhida à população LGBT+ na cidade de São Paulo.
QUINTAL COMPARTILHADO
Operando bem longe dos holofotes do centro da cidade, no número 282 da Avenida Grande São Paulo, no Grajau, o Galpão Cultural Humbalada é um espaço de resistência na periferia.
Há sete anos o Galpão Cultural é a sede da Companhia Humbalada de Teatro, sendo que há dois está na região do Grajau. O espaço recebe peças teatrais, shows de música, dança e debates que envolvem principalmente a questão LGBT+ e feminista.
Bruno César, 30, a Brunette, é ator e um dos organizadores do galpão cultural. “Ao longo dos anos a gente foi percebendo que o espaço começou a acolher as pessoas que estavam nesse processo de descoberta enquanto pessoa LGBT, principalmente os mais jovens. O espaço tinha se tornado a possibilidade de uma existência” comenta.
Assim como a Casa 1, o Galpão Cultural visa ser um lugar interseccional. “A gente quer muito que esse lugar seja um ‘quintal compartilhado’, onde todas as existências sejam possíveis, para LGBTs, mulheres, negros. Um lugar de intersecção de raça, de gênero, de classe”, explica o ator.
FÉ QUE ACOLHE
Locais que historicamente acolhem a população LGBT+ são as comunidades terreiro. Conhecidas pela sua receptividade, as religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, se baseiam no respeito. “Essas religiões agregam valores. Elas recebem todo tipo de pessoa, desde que haja o respeito”, afirma Marcio Teles, 42, sacerdote de Candomblé.
A Associação Cultural Religiosa e Beneficente Comunidade de Oyá e de Ogun é um desses espaços. Fundada em 1975, a instituição exerceu suas atividades no bairro do Planalto Paulista, em São Paulo, durante mais de 35 anos. O terreiro celebrava festas e eventos para pessoas de todas as idades, cores e classes, e por isso comprou briga com muita gente que não respeitava as práticas da religião e acabou mudando de lugar.
Em 2001 a Comunidade de Oyá e de Ogun se mudou para o distrito de Jundiapeba, na cidade de Mogi das Cruzes, São Paulo. Lá o babalorixá Flávio de Yansan, 63, líder da associação, pretende erguer uma sede ainda maior. Para ele, as religiões de matriz africana pregam uma cultura de paz. “Achei uma fé que me acolheu sem querer me modificar, uma fé que não me faz sentir culpa de ser quem eu sou”, explica.
Por sua vez, as religiões cristãs desempenham um papel histórico de exclusão de tudo aquilo que difere de suas doutrinas dogmáticas. Fundada em 1968 nos Estados Unidos pelo reverendo Troy Perry, a Igreja da Comunidade Metropolitana (Metropolitan Community Church no inglês original) vai radicalmente contra essa corrente ao pregar a inclusão e o acolhimento de todas as pessoas que compartilham a mesma fé.
“Aqui eu pude encontrar conforto, alegria e entendimento para as angústias que eu trazia. Foi nesse lugar que eu pude me empoderar para que a minha transição de gênero ocorresse de uma maneira mais tranquila em um momento muito conturbado da minha vida”, conta Alexya Salvador, 36, pastora auxiliar da Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo (ICM SP). Alexya é casada e mãe de dois filhos, um menino, Gabriel, 11, e uma menina, Ana Maria, 10, que também é trans. Ana Maria nunca se identificou com o gênero que foi designada ao nascer e foi a segunda menina no país a receber a certidão de nascimento retificada com o nome e gênero femininos.
“A minha família não é diferente de nenhuma outra, vivemos as mesmas realidades que a sua. O que acontece é que as pessoas querem classificar a minha família”, explica Alexya. Quando questionada sobre as críticas que seu modelo familiar recebe, a pastora é categórica. “Quem disse que eu não posso ser mãe? Quem disse que meu marido não pode ser pai? Quem disse que eu não posso ter filhos? Desde pequena eu tinha certeza de que eu não teria uma família, que eu seria uma pessoa sozinha. A minha alegria hoje é perceber que eu tenho, sim. Ser mãe ou ser pai é um dom, é um chamado, é uma vocação e eu tenho isso”, completa.
FAMÍLIA QUE SE ESCOLHE
Nem só de espaços físicos uma acolhida é feita. O conceito de família, como aquela que dá suporte, apoio e acolhimento também compreende um tipo diferente de coletivo: as Famílias LGBT. “Aquilo que une os membros dessas Famílias é o sentimento. É isso que a torna uma família agregada, uma família além daquela que a pessoa tem como família biológica. É o um grupo de pertencimento”, é o que explica Fuh Miguel, 33, orientador socioeducativo no Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD), na Vila Buarque.
Ele é representante do Consulado das Famílias, uma articulação política do movimento das Famílias LGBT e Aliados que promove a interação desses grupos. Fundado em abril de 2014, o Consulado hoje conta com 10 famílias que atuam na defesa de direitos humanos e reúnem jovens e adolescentes LGBT+.
Uma ação importante das Famílias é o diálogo que elas constroem com os familiares de alguns membros mais novos que não aceitam a condição LGBT+, visando evitar violências dentro de casa, como a expulsão. Fuh, também é membro de um dos grupos, a União das Famílias d' Matthah. "A experiência dos outros membros faz com que essa pessoa não se sinta sozinha. Mostramos às famílias que o fato de alguém ser LGBT não a desmerece do resto da população geral”, pontua.